quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Palestra no Carmelo

PALESTRA NO CARMELO SÃO Jose
DIA 15/11/2014 - CACHOEIRO DE ITAPEMIRIM.- ES.

Quero agradecer o convite, sinto-me honrado de estar aqui no Carmelo São José para prestar meu depoimento.
Que minhas primeiras palavras sejam uma homenagem a Freira Franciscana Maurina Borges da Silveira, presa e torturada durante a ditadura, foi Diretora do Orfanato Lar Santana -Ribeirão Preto. Presto também a minha homenagem ao Frei Dominicano Tito de Alencar Lima, em nome deles homenageio a todos que passaram pelos porões da ditadura!
A irmã Maurina, assim ela era conhecida, dizia: “não gosto de falar sobre a que passei, já perdoei a todos”.
Pois é Irmã Maurina, nós falaremos por ti, falaremos o que aconteceu para que nunca mais se repita!
Disse-me a Madre Salete, que quando um pai tem uma filha no Convento se torna pai de todas!
Pois bem minhas filhas assim dirijo-me para vocês!
Prezados presentes nesse encontro!

O convite é para prestar meu depoimento, não o que li nos livros.
Completei 29 anos de idade na Ilha das Flores com o corpo todo dolorido por espancamento e queimado por fios elétricos no DOI-CODI – RJ.
Nasci em Itapemirim no sul do Espírito Santo. Tinha uns 8 para 10 anos quando ouvi duas pessoas do local conversando, uma dizia que a Usina do município sustentava 2 mil famílias a outra dizia que era justamente ao contrário, eram as duas mil que sustentavam a usina!
A partir daquele momento, nunca mais deixei de tomar posição que não fosse ao lado dos menos favorecidos. Aquela conversa foi um marco, uma bússola que passou a me orientar pelo resto da vida! EU TENHO POSIÇÃO EU TENHO LADO!
Estudei na Escola Técnica de Vitória, onde aprendi a profissão de Linotipista, nessa escola tinha um inspetor bem autoritário que constantemente reunia toda escola no auditório para pregar alguns sermões, e um dos seus preferidos era dizer, que a escola oferecia uma alimentação excelente, não podíamos questionar, porque na maioria em nossas casas não recebíamos uma alimentação tão salutar, ele falava para todos.
Encolhia-me na cadeira, parecia que ele estava se dirigindo somente para mim.
Incomodado com aquilo procurei um professor, e disse: que me sentia constrangido com aquela pregação do inspetor. Ele foi bem sincero ao me dizer:
Levante a cabeça, o que o governo faz é fruto dos impostos de seus pais! Uma simples caixa de fósforos paga-se imposto! E tem mais, vocês estão aprendendo uma profissão que possivelmente irão trabalhar para a classe patronal que se enriquece com o suor do trabalho de vocês, eles precisam de mão de obra especializada.
Fiquei entusiasmado, passei a ter a munição que para o desejava! Em outra reunião, com esse mesmo inspetor levantei o braço, e pensei comigo mesmo:
É AGORA!!
Inspetor... Fui informado que nada aqui é de graça: Tudo que o governo faz é repassar o que arrecada de impostos do povo! O auditório que sempre se manteve em silêncio naquele dia se manifestou!
Minha empolgação não durou muitos dias! Fui chamado pela direção, eles queriam saber quem passou aquela informação!
Naturalmente eu não disse nada! Sobrou para meu pai que teve que comparecer a escola!
A direção contou para meu pai que eu tinha sérias tendência comunista... Veja só que ironia, que premunição!

Tive que fazer uma defesa escrita. Na defesa escrevi que era Católico Apostólico Romano e não conhecia a doutrina que me acusavam!
Terminando o curso na escola, fui para o Rio de Janeiro com a intenção de trabalhar estudar.
Ao chegar ao Rio fui para o Sindicato, o sindicato representava para mim uma “trincheira de luta” da categoria, na companhia de velhos militantes de posição bem definida, participei de diversas comissões de salário. Sempre defendi que o sindicato não era as quatro paredes, sindicato somos todos nós, se ele é fraco é porque somos fracos. Se conhecermos a história de luta da classe trabalhadora, não podemos nos considerar fracos. Tudo foi conquistado foi através de muita luta!
Fui diretor-presidente de um jornal que nome em si representava uma jornada brilhante de luta da categoria!
Criamos o jornal cuja finalidade entre outras era que pudéssemos arregimentar os companheiros que com o golpe militar de 64 tiveram que se afastar.
Fizemos o jornal 7 DE FEVEREIRO, o nome era uma homenagem a uma greve em São Paulo em 1923, comandada pela UTG (União dos Trabalhadores Gráficos). Uma organização fundada em 1919 que era a União de diversas associações de tipógrafos. A UTG tinha como fundador e Secretário Geral o linotipista João da Costa Pimenta, também dos Fundadores do Partido Comunista em 25 de março de 1922. O Jornal 7 DE FEVEREIRO sugeria em sua pauta o 2º CONGRESSO DOS GRÁFICOS DA GUANABARA, todo o número se discutia com a categoria os itens sugeridos.
Para provar a categoria que o jornal não tinha somente a finalidade reivindicatória criamos também uma coluna chamada “CANTINHO DO SABER”, cada número ali colocava um pensador, um filósofo, naturalmente o primeiro foi Sócrates, 600 anos antes de Cristo, o que ele pregava etc e tal. Seguimos com Voltaire, Freud, noções básicas do que representavam esses pensadores.
Por ordem do DOPS, o jornal teve que deixar de circular, o que já tinha sido impresso eles queimaram no pátio do sindicato.
Com a publicação do Ato Institucional Nº 5, no dia 13 de dezembro de 1968, a ditadura tirou a máscara, quem quisesse continuar na luta teria que ser diferente, as perseguições eram mais rigorosa. A Doutrina de Segurança Nacional incluía além do fechamento do Congresso Nacional, suspensão de instrumento importante como habeas-corpus, prisões sem ordem judiciais, sequestros, torturas, invasões de Instituição que eles ainda mantinham certo receio. Houve muitas cassações de mandatos. Não se votavam em governador, se criou a figura ridícula do senador biônico! As coisas se agravaram ao ponto de outubro de 1969, eles prenderam e torturaram a Irmã Maurina, dessa data em diante a cúpula da Igreja católica passou a tomar posição, principalmente nesse caso que teve forte repercussão internacional.
Fui seqüestrado em 1972, em Realengo ao sair de casa!
No mesmo momento que era sequestrado de forma covarde sem
direito a nada, a não ser à vontade de homens armados de metralhadoras aos gritos e palavrões. Minha residência era invadida por outro grupo, revistando, dando empurrões com os canos das metralhadoras, num total vandalismo.
Apesar de nada encontrar em minha casa, sacos e mais sacos eram expostos na calçada e eles diziam que eram armas e munições!... Uma forma de impressionar a vizinhança. A desconstrução mediante dos vizinhos!
Uns quarenta minutos mais ou menos após o sequestro, cheguei na Barão de Mesquita na Tijuca onde funcionava o DOI-CODI.
Se lá não era o inferno, com certeza era sua sucursal, ou melhor, uma das sucursais espalhadas por todo país. Mandaram-me tirar a roupa. Despido fui amarrado com fio elétrico nos dedos dos pés e das mãos, faziam as perguntas de praxe.
Indagando sobre a organização e o codinome. Respondia sempre: - Meu nome é Fraga Junior, sou do Sindicato dos Trabalhadores Gráficos.
Aos gritos e palavrões ao meu redor parecia que eram uns 6 a 8 torturadores. Com o capuz na cabeça não vi quando uma pernada me jogou no chão. A mão do monstro me agarrou na parte genital, amarrando um fio. A manivela funcionou. Gritei sufocado por um capuz preto. Parecia que todos os nervos do corpo estavam eletrificados. Cheiro de cabelo queimado, aqueles que rodeiam o órgão genital amarrado. Após algum tempo, que parecia uma eternidade, os fios foram retirados. Socos e joelhadas partiram de todos os lados, com as mesmas perguntas e palavrões. Caído, fui arrastado pelas pernas até um quadrado que eles denominavam geladeira. Na geladeira uma friagem descomunal. Quando acordei, ouvi uma voz vinda de um aparelho instalado no teto, em seguida uma gargalhada sádica, e as mesmas perguntas, era como se fosse uma gravação repetindo a mesma coisa.
Codinome e organização. Como a resposta era a mesma. Fraga Jr. do Sindicato dos Trabalhadores, não completei a frase, um apito de uma fábrica parecia estourar os tímpanos naquele ambiente fechado e escuro. Não era possível calcular o tempo, era uma coisa infernal. Toda madrugada era retirado, sempre nu com o capuz preto, era espancado com socos nos rins, peito, e só paravam quando eu caia desmaiado.
Após uns 40 dias sentia dores no peito, passando mal, fui examinado pela mesma pessoa que me examinou anteriormente após ter deixado a geladeira, era o médico Amilcar Lobo.
Fui levado encapuzado para o 1º Distrito Naval e no outro dia para a Ilha das Flores.
Fiquei incomunicável por alguns dias, nesse lado do presídio estavam presas diversas jovens por resistência a ditadura.
Mesmo proibida de qualquer manifestação presas em suas celas elas não deixavam de prestar sua solidariedade. Com palavras de incentivo, assim como: LEVANTEA CABEÇA, VOCÊ NÃO ESTÁ SÓ!
Realmente não estávamos mesmo só! O sofrimento de nossos familiares era muito grande! Ninguém sabia onde encontrar o que eles ilegalmente seqüestravam! Nessa época era proibido qualquer jornal noticiar prisões, após mais ou menos uns quarenta dias de muita procura, ninguém sabia aonde me encontrar, se estava vivo ou não. Minha irmã atendendo pedido de minha mãe foi até Igreja Nossa Senhora do Amparo em Itapemirim (Igreja loca). Naturalmente para incluir meu nome em uma missa! O desespero era muito grande na família. Devido o nervosismo, ninguém sabia explicar, a pessoa que anotou o pedido fez de uma forma que o padre me incluiu como morto nas orações. Já fui recomendado!
Enquanto isso um advogado visitando outros presos me localizou na Ilha das Flores.
Ainda na Ilha das Flores, tive o pedido de habeas corpus negado pelo Superior Tribunal.
A Tribuna da Imprensa, jornal impresso do Rio de Janeiro, jornal do qual já tinha trabalhado, forçado pelos trabalhadores, na época pararam o jornal por duas horas para que pudessem publicar com certo destaque o pedido negado!
Publicou o seguinte:
LINOTIPISTA PRESO E LEVADO PARA ILHA DAS FLORES
O advogado Jansen Machado deu entrada, ontem, do pedido de habeas –corpus no Superior Tribunal Militar em favor do linotipista Valdir Fraga Junior, que foi preso no dia 24 de maio último, cerca das 14 horas, ao sair de sua residência, na Rua Paranaí, 74 – Realengo sendo levado para o 1º Batalhão de Polícia do Exército e, dias depois, para a Ilha das Flores, onde se encontra.
Afirma o advogado que embora a prisão tenha sido efetuada há mais de um mês até essa data não foi comunicada as autoridades judiciárias competente o que fere frontalmente dispositivos constitucionais e legais. E aponta como autoridades coautoras o comandante do 1º Distrito Naval e requere a liberdade do paciente em caso de indeferimento, seja comunicada a prisão ao Juiz competente.
Foi publicado no dia 13 de julho de 1972.
Algumas semanas depois de ter o habeas corpus negado pelo Superior Tribunal Militar, fui colocado em liberdade condicional, as últimas palavras de João Massena, disse enquanto me despedia dos companheiros de cela, que tomasse muito cuidado porque eles estavam soltando alguns presos para serem eliminados. Eu poderia ser um deles! Mandou dar um abraço no amigo dele um gráfico que trabalhava na Revista “O Cruzeiro”, preso com ele em Fernando de Noronha. Waldemar Daim.
O João Massena após ter sido solto, foi realmente eliminado. Segundo o livro “Memórias de uma Guerra Suja”, do bandido hoje convertido Pastor Cláudio Guerra, ele foi incinerado junto com outros presos num forno da Usina de Campos dos Goytacazes. Claudio Guerra foi Secretário de Segurança do ES. Chefe do Esquadrão da Morte no estado. Réu confesso, ganha dinheiro contando essas monstruosidades, e prega a salvação numa dessas igrejas de mercado!
É irmã Maurina... Onde estiver nós temos que contar para que isso jamais volte a acontecer! Eles continuam por aí.
Voltando a falar em liberdade condicional, sem poder deixar o estado, teria que ir toda semana assinar um livro de presença no 1º Distrito Naval, se fosse ao sindicato perderia a liberdade. Vinte quatro horas mais tarde estava no Sindicato, fui para o Departamento Jurídico reivindicar meus direitos. A Editora que trabalhava tinha me dado abandono de serviço, mesmo sabendo de minha prisão! Difícil foi arrumar um trabalho, que o patrão aceitasse em me dispensar para assinar a tal presença na Marinha. Além de manter nosso controle era também uma forma de dizer para o patrão e marcar nossa ficha. Certa vez trabalhando, ao sair do trabalho um carro suspeito, com um carona com meio corpo para fora do carro andando bem devagar me jogou a metade de um paralelepípedo, por uma questão de milímetro não tinha minha cabeça atingida, logo no outro dia os patrões recebiam um telefonema,perguntando por quê estava
me dando emprego e outras ameaças, fui dispensado na hora!
Passei a ser revistado por diversas vezes!
Pregavam realmente o terror! Estava com visão dupla, ao sentar diante da linotipo, tomava choque, somente com a trepidação da máquina ligada. Para a medicina, aquilo era efeito condicionado.
Tive solidariedade de diversos companheiros, eles mesmos faziam questão de contar, a minha posição assumindo toda responsabilidade de meus atos, nenhum companheiro passou por prisão por minha causa!
Em 1975 após julgado e absolvido, nunca deixei um dia sequer de militar pela volta das liberdades democráticas, fiz parte do Comitê de Anistia de Nova Iguaçu, fui receber diversos exilados no Galeão recordo-me da vinda de Luiz Carlos Prestes, na Casa dos Estudantes, CEU, fomos saudar Apolônio de Carvalho. etc...
Após a publicação da Anistia o meu pedido foi feito em conformidade com a lei, foi assinado no escritório do advogado Dr. Humberto Jansen Machado, com sua secretária segurando na minha mão, com a visão dupla tinha dificuldade até de assinar meu nome. O INSS fez questão de dar suas contribuições sumindo por duas vezes com o processo. O ranço ideológico de alguns funcionários era comprovado.
Sou o único anistiado filho de Itapemirim, ultimamente o governo através do Diário Oficial pediu-me desculpas. Toda semana através de vídeo conferencia faço uma entrevista através de um serviço oferecido pelo Governo Federal de uma assistência psicológica chamada de CLÍNICA DO TESTEMUNHO.
Na cidade dezenas de professores de história fez circular um manifesto de solidariedade!
Nas redes sociais, ou em qualquer lugar que tenho oportunidade de me pronunciar, falo nas punições aos crimes de lesa humanidade que não prescreve. O Brasil assinou tratado internacional sobre o assunto!
“Os tambores das transformações” é a juventude, digo, a juventude que sabe a história, que sabe o que se passou nesse país! Se essa parcela heróica do povo não se manifesta, será difícil fazer alguma coisa!
Antes de terminar agradeço a atenção de todos quero citar uma das últimas escritas do Frei Tito, sugado por seu tormento interior, registrou em seu caderno de poemas:
“quando secar o rio daminha infância / secará toda dor. Quando os regatos límpido de meu ser secarem / min’alma perderá sua força. Buscarei, então, pastagem distantes / lá onde o ódio não tem teto para repousar. Ali erguerei uma tenda junto aos bosques. Todas as tardes, me deitarei na relva / e nos dias silenciosos farei minha oração. Meu eterno canto de amor: / expressão pura de minha mais profunda angustia. Nos dias primaveris, colherei flores / para meu jardim da saudade. Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio”.
Obrigado pela atenção!

Um comentário:

  1. Completei 29 anos de idade com o corpo dolorido pelo espancamento e queimado por choques elétrico! Na noite de meu aniversário, não dormi, passei a noite toda agarrado na grade da cela, olhando bem ao longe as luzinhas do Rio de Janeiro! Nesse lado do presídio dava para se vê de noite as luzes do Rio.
    Mais tarde vim saber que meus pais, naquela noite não dormiram.
    Realmente como diziam as companheiras da cela feminina: “você não está só”! Não estava só... o sofrimento eram de muitos!

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