Entrevistar um ex-preso político e sentir de perto todo o processo de tortura e humilhação vale para mim que leciono história, como uma aula de tudo aquilo que estudei nos livros.
A narrativa foi recheada de pura emoção e relembrar para as gerações o horror de uma época que levou o país ao caos político e escárnio das instituições democráticas.
Era início de uma tarde chuvosa do mês de maio de 1972, num bairro operário da zona norte do Rio de Janeiro.
O bairro já foi sucesso nos versos de Gilberto
Gil, "Alô Realengo, aquele abraço", mas neste bairro quem estava sendo
abraçado, ou melhor, algemado e encapuzado era um trabalhador gráfico,
oriundo da Vila do Itapemirim que estudou na Escola Técnica de Vitória,
Valdir Fraga Junior, que abraçou de corpo e alma o sonho dos mais belos
do mundo, o sonho socialista. Aquele sonho que a milhares de anos o
homem persegue, ou ousa sonhar-se.
No mesmo momento que era seqüestrado de forma
covarde sem direito a nada, a não ser à vontade de homens armados de
metralhadoras aos gritos e palavrões. Neste momento sua residência era
invadida por outro grupo, revistando, dando empurrões com os canos das
metralhadoras, num total vandalismo.
Apesar de nada encontrar em sua casa, disse Fraga
Junior, sacos e mais sacos eram expostos e diziam que eram armas e
munições!...Uma forma de impressionar a vizinhança.
Relata ainda, que uns quarenta minutos mais ou
menos após o seqüestro, chegaria na Barão de Mesquita na Tijuca onde
funcionava o DOI-CODI (Departamento de Operações e Informações - Centro
de Operações e Defesa Interna).
Se lá não era o inferno, com certeza era sua
sucursal, ou melhor, uma das sucursais espalhadas por todo país.
Mandaram-no tirar a roupa. Despido foi amarrado com fio elétrico nos
dedos dos pés e das mãos, enfatizou que faziam as perguntas de praxe.
Indagando sobre a organização e o codinome.
Respondia sempre: - Meu nome é Fraga Junior, sou do Sindicato dos
Trabalhadores Gráficos.
Aos gritos e palavrões ao seu redor parecia que
eram uns 6 a 8 torturadores. Com o capuz na cabeça não viu quando uma
pernada o jogou no chão. A mão do monstro o agarrou na parte genital,
amarrando um fio. "A manivela funcionou. Gritei sufocado por um capuz
preto. Parecia que todos os nervos do corpo estavam eletrificados.
Cheiro de cabelo queimado, aqueles que rodeiam o órgão genital amarrado.
Após algum tempo, que parecia uma eternidade, os fios foram retirados.
Socos e joelhadas partiram de todos os lados, com as mesmas perguntas e
palavrões. Caído, fui arrastado pelas pernas até um quadrado que eles
denominavam geladeira. Na geladeira uma friagem descomunal. Quando
acordei, ouvi uma voz vinda de um aparelho instalado no teto, em seguida
uma gargalhada sádica e depois as mesmas perguntas, como se fosse uma
gravação repetindo a mesma coisa". Relembra Fraga.
Codinome e organização. Como a resposta era a
mesma. Fraga Jr. do Sindicato dos Trabalhadores, não completou a frase,
um apito de uma fábrica parecia estourar o tímpano naquele ambiente
fechado e escuro. Não era possível calcular o tempo, era uma coisa
infernal. Toda madrugada era retirado, sempre nu com o capuz preto, era
espancado com socos nos rins, peito, e só paravam quando caia desmaiado.
No final de mais ou menos quatro dias, sem
refeição nenhuma, apenas com um ou dois dedos de água. Uma sede terrível
provocada por banho de suor após tortura, senti-me muito mal, dentro da
geladeira desmaiei e fui acordar, sentado numa cadeira que eles
chamavam de "cadeira de dragão", com o capuz um pouco levantando, um
torturador dando algo para cheirar, não sabia o que era, parecia vinagre
ou amônia, um outro segurando o pulso como se estivesse medindo as
batidas.Uma voz com tom bem alto disse: "Desta vez você não sai vivo.
Você sabe onde está?" Um pouco desligado, tonto, não respondi a
pergunta.
Quem perguntou foi o mesmo que respondeu: "Aqui é
o Esquadrão da Morte!" Me arrastaram por uma escada e me jogaram numa
sala. A primeira coisa que fiz foi correr para uma torneira e beber
bastante água até a barriga doer. A bexiga encheu, quando fui urinar,
senti que as marcas do fio amarrado na parte genital deixaram uma
ferida, que a própria urina já constituía o prolongamento da tortura.
A primeira refeição que fiz, foi uma marmitex
entregue através de uma portinhola. Cai no sono profundo apesar das
dores em toda parte do corpo. Acordei com mais de um filhote da sucursal
ao seu lado, já enfiando o capuz na cabeça com toda espécie de ameaças.
Não sei quanto tempo levei, mas parecia uma
eternidade. Acrescentaram mais algumas perguntas. Queriam nomes de
companheiros do sindicato, na ótica fantasiosa da repressão, os gráficos
eram um "ninho de comunistas".
Valdir sentia o corpo doído, a perna direita não
podia firmar no chão, de tão inchada, o braço direito parecia uma asa
quebrada de um pássaro. Porém o pensamento voava alto, mas o corpo
sentia que estava perdendo as forças.
Nas horas de dor me concentrava e pedia todas as
forças do Universo, proteção e coragem para resistir, e que nem um de
meus companheiros gráficos, ou ser humano fosse entregue aquelas feras.
Se fosse necessário que a morte chegasse antes desta hora.
Numa noite de capuz na cabeça, descia novamente a
escada para mais uma sessão de tortura, sentia-me tão grande, que os
monstros que me carregavam pareciam ratos. Assim como a mente me fez
sentir como rato, me fez sentir um gigante. Conclui Fraga.
Em 1975 fui julgado por Tribunal Militar. A
promotoria pedia minha condenação. Sendo me dado o direito de me
pronunciar, relatando as atrocidades cometidas nos quartéis. O Tribunal
não havendo provas me absorveu. Hoje faço parte da Associação dos
Ex-Presos Políticos, com sede em Brasília.
"Uma verdade é comprovada: nenhum companheiro
passou pelos porões da tortura, nenhum nome foi entregue. Assumi a minha
posição militante de esquerda em defesa da classe trabalhadora".
Finalizou Valdir Fraga Junior.
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